Havia
decidido lutar até o fim. Não sabia exatamente o que isso significava. Mas
estava decidido a fazê-lo.
A
irmã não via com bons olhos a sua decisão. Sempre sonhara com algo melhor para ele,
o irmão mais novo.
Mas a preocupação demasiada da irmã, que se
comportava como se fosse a sua mãe, lhe fazia mal, afetava o seu orgulho,
porque se julgava homem formado e independente, mesmo que a realidade o
desmentisse a cada manhã.
O
calor estava insuportável. Suara feito bica a noite toda. Nem o leite gelado
refrescava minimamente o calor que sentia. Tomara banho ainda bem cedo, banho
gelado, mas de nada adiantara. Evitara secar o corpo com a toalha, deixando
secá-lo naturalmente antes de vestir-se seguindo as orientações da irmã, ao
menos essa.
Estavam
ambos sentados à mesa naquela manhã quente de verão. Ela fazendo contas ou
tentando descobrir um modo de como poderia pagá-las naquele mês. Ele,
elaborando planos de como agir em face os problemas que se apresentavam, pensativo,
o olhar fixo no copo de leite, ainda gelado que tinha diante de si.
Coma
alguma coisa, a irmã lhe disse, notando o seu jeito introspectivo.
Pensou
insistir que ele comesse alguma coisa, mas desistiu, porque não valia a pena.
Não teria resposta, nem receberia um olhar da parte dele. O silêncio habitual,
com que ele começava e terminava os dias, toda vez que enfrentava um problema,
a incomodava. Mas sabia que não tinha meios para demovê-lo daquela condição,
porque manter-se assim, era a vontade dele. E mais que vontade era a sua
natureza.
Vou
sair, ele disse. Não sei quando volto. Não se preocupe comigo. Você tem o meu
número. Se precisar me ligue. Estarei perto. E se não estiver mandarei alguém
pra cuidar de você.
Ela
ouvira a tudo, em silêncio, e sem esboçar comentário, enquanto retirava a mesa
do café da manhã. Ao pé da porta da cozinha, o cãozinho a observava resignado.
Um
carro parou em frente à casa. Dentro, uns sujeitos de aparência nada amistosa.
Ele entrou no carro, como se sua presença já fosse esperada. E partiram.
Rodaram
alguns quilômetros pela rodovia que levava à cidade vizinha mais próxima. Uma
pequena cidade. Dez, quinze mil habitantes, não mais. Uma cidade parada no
tempo, que vivia basicamente da cerâmica instalada havia vários anos. O
comércio era pouco, quase nada. Bares havia alguns. Postos de combustíveis,
dois, instalados em lugares estratégicos; um na entrada e outro, na saída da
cidade.
Pararam
em frente a um barracão abandonado, desde que a tecelagem que funcionara ali
encerrara as atividades havia alguns meses. Um guarda vigiava o local, que
pertencia a uma família que morava em outra cidade, bem distante daquela.
Ele
desceu do carro, que logo desapareceu virando a esquina. Finalmente a fome havia
chegado, e ele resolveu que melhor seria calçar o estômago como diziam as
pessoas antigas. Andou pela cidade, à procura de um lugar onde pudesse comer.
Sua presença chamara a atenção dos aposentados que jogavam baralho na praça, no
centro da cidade, e de algumas senhoras que varriam interessadas a frente de
suas casas.
Não
demorou e uma viatura da guarda municipal passou por ele, bem lentamente.
Percebeu que fora observado, mas os guardas, de certo resolveram que ele não
merecia uma abordagem mais minuciosa. Apenas um educado “Bom dia”.
Se
precisar de algo... Mas ele não precisava de nada que não fosse um lugarzinho
onde pudesse matar a fome, antes que a tremedeira de sua mão se tornasse
indisfarçável, o que seria uma afronta para o seu orgulho e perturbaria a sua
paz de espírito.
Ao
dobrar uma esquina encontrou um bar aberto. Achou que lá talvez pudesse
resolver o menor dos seus problemas: a fome.
Pediu
um salgado e um refrigerante, e ocupou uma mesa de canto nos fundos do
estabelecimento, onde a claridade daquela manhã de sol escaldante não alcançava.
Tirou a jaqueta e a colocou sobre a mesa, ao lado do celular, e voltou sua
atenção para os pôsteres de times de futebol e de mulheres bonitas e seminuas que
ornamentavam as paredes do lugar.
Foi
então que ponderou seriamente pela primeira vez sobre a decisão que havia
tomado.
Talvez,
se bebesse... Ou fumasse um cigarro, lá fora, na rua, e pudesse se sentir
melhor. Mas evitou fazê-lo. Limpou a boca com o guardanapo de papel,
levantou-se, agradeceu, pagou a conta e foi embora.
De
novo na rua não sabia mais para onde ir nem o que fazer. Tinha a opção de ligar
para a irmã, mas preferiu descarta-la, porque isso seria demonstrar fraqueza. E
abominava essa possibilidade.
Caminhou
algum tempo pela cidade, sem destino, acompanhado à distância pela viatura da
guarda municipal. O sol foi se pondo e o dia desaparecendo, até que, já fora da
cidade, caminhando pelo acostamento da rodovia, viu quando os últimos raios de
sol daquela tarde, agonizaram e morreram no horizonte.
Sentiu-se
de repente, como aqueles últimos raios de sol; morrendo. Tomou o último gole de
água que havia dentro de uma garrafinha guardada na mochila. A boca não demorou
a secar. E não havia mais água. E não haveria até o despertar de um novo dia. Caminhou
até que lhe faltaram forças nas pernas e o sono acabou por derrotá-lo.
Na
manhã seguinte, estava com as roupas do corpo todas molhadas pelo orvalho da
noite. Havia dormido no acostamento, encostado num barranco.
A
fome voltara para castigá-lo ainda mais, porque se juntava ao corpo todo
dolorido. Os pés também estavam molhados, e gelados, assim como as faces, as
orelhas e o nariz. Um gosto amargo na boca.
Voltara
a caminhar porque outra coisa não lhe restava fazer. Lembrou que o Echo and the
Bunymen havia feito um show no Canecão em 1983, e que a Fátima Bernardes
aparecera com cabelo curto pela primeira vez na bancada do Jornal da Globo em
Outubro de 1990. Essas coisas faziam parte do seu caderno de notas. Qual deles
exatamente não sabia, porque afinal, tinha tantos que não saberia precisar a
quantidade exata.
A
medida da combinação, sim, ele sabia. E lembrava-se constrangido da primeira
vez que dela se utilizara, ao chegar da escola, tarde da noite. Os pais já
haviam se retirado para o quarto, e a casa, a partir daquele instante lhe
pertencia. Fora até os fundos da casa, o mesmo lugar, onde estivera com a irmã
pela última vez. Apanhou no bolso da jaqueta, a folha de caderno onde havia
embrulhado uma porção do pó branco que havia ganhado de um sujeito na saída da
escola.
Com
isso você pode tudo, foi o que dissera o sujeito.
Escrever
poesia, também?
Poesia,
música e o que der na cabeça.
Quanto
pago por isso?
Nada,
por ora.
Sério?
Sério.
Então
sorriu, desacreditando, mas segurando o produto firmemente com a mão.
Experimente.
Veja se é bom.
Se
não for, eu não pago. E se for, eu volto.
Pode
crer.
A
primeira sensação foi ver o mundo girar em sua volta, como se estivesse no
epicentro de um terremoto. O som ambiente foi ficando longe de sua percepção. E
faltara-lhe de repente o sentido de profundidade em relação ao espaço onde se
encontrava. Os objetos em torno de si pareciam sair do chão e se movimentar. E
o chão, sob os seus pés, parecia não existir. Viu-se como se afastado de seu
corpo. A atmosfera tornou-se sufocante, o ar irrespirável. As mãos haviam
perdido o tato, e tinha a sensação de que podia penetrar as coisas e os objetos
ao contato das mãos. Perdeu então os sentidos. E quando retornou a si, estava
sentado com as costas na parede fria dos fundos da casa, sob os olhos atentos
da irmã mais velha, que já naquele tempo havia assumido a heroica missão de
cuidar dele.
O
que deu em você?
Demorou
até que ele esboçasse uma resposta.
Não
sei. Nada... Eu não sei. Estou confuso.
Depois
de observá-lo por algum tempo, desconfiada, a irmã o ajudou a se levantar e a
caminhar até o quarto. Tirou-lhe a roupa, e fez com que se deitasse debaixo da
coberta. A noite já se despedia e a tímida claridade da manhã anunciava a
chegada de um novo dia, quando ele finalmente conseguiu fechar os olhos e
adormecer.
Passados
muitos anos...
Os
pais haviam morrido, a irmã havia casado, perdido um filho e se separado. E
ele...
Nunca
lhe incomodara que a vida jamais houvera sido como ele desejara no tempo em que
iam aos bares, ele e a irmã, aos sábados, para beber e jogar sinuca. A irmã, já
em crise conjugal, entrava numa conversa promissora com qualquer boa pinta que
por lá aparecesse. E, ao final da noite, à hora de voltar pra casa, antes que o
marido retornasse do plantão médico, cabia a ele, o irmão, arrancá-la dos
braços do idiota sem noção que pretendia parar com ela num beco escuro
qualquer.
Lembravam-se
disso, às risadas, enquanto esperavam por atendimento na sala de curativos da
unidade de saúde, onde ele, uma vez por semana, ia remendar os trapos no qual haviam
se tornado os seus pés.
Tinha
agora, 40 anos e a irmã 48. E era ela que o conduzia na cadeira de rodas, que
ele conseguira em doação, da parte de uma ouvinte do programa sertanejo de
todas as manhãs, apresentado por um velho amigo seu.
O
que não faz a diabetes na vida de um homem, perguntava-se toda vez que ficava
sozinho no escuro do seu quarto.
Quase
cego. Quase sem o movimento das mãos. Sem forças nas pernas para manter-se de
pé. E continuava a tomar os remédios, a fazer os exames periódicos, a se privar
das delícias da culinária que tanto apreciava.
A
última novidade, revelada pelos exames periódicos que fazia na clínica de sua
confiança, era que agora sofria também de hipertensão. O que em outras
palavras, significava mais remédio acrescidos à sua extensa listinha.
Não
fosse a irmã assisti-lo em suas necessidades básicas, talvez já tivesse
morrido.
Havia
momentos de extrema solidão no escuro do quarto, que a derradeira hipótese
tragava a sua esperança.
Mas
qual era a sua esperança? Doente, sem cura, aos 40 anos, caminhando para um
final indigno e tão diferente do que imaginara para si.
Não
havia esperança. E se havia, não era maior que a cinza de uma bituca de cigarro
se apagando aos poucos no cinzeiro.
Olhando
pela janela da sala de curativos, percebeu que a chuva, lá fora, havia cessado.
As nuvens, se dissipado, e uma réstia de luz, permitiu um pouco de claridade
naquela manhã.
Pediu
que a irmã o levasse até lá fora para ver o sol. Pediu com insistência diante
da recusa inicial dela.
Você
vai perder a sua vez, ela disse.
E
ele, olhando para as pessoas que o observavam, respondeu:
Não
me importo, querida. Eu já perdi tantas coisas, que mais essa não fará
diferença alguma.
Passaram
pela sala de recepção, e os olhos das atendentes se voltaram todos para ele.
Finalmente
na calçada, lá fora, pediu que a irmã lhe acendesse um cigarro, o que ela fez
com alguma relutância. Depois, pediu que ela o colocasse na direção do sol. Acomodou-se
na cadeira de rodas, segurando o cigarro e fez menção de dar uma tragada, mas
não chegou a fazê-lo. Manteve os olhos abertos, o mais que pode, em direção ao
sol, ainda fraco, que começava a despontar entre as nuvens, naquela manhã de
outono. E ficou assim um tempo, até que a irmã chamasse por ele. Não pode
ouvi-la.