segunda-feira, 6 de julho de 2020

E O MAESTRO ENNIO MORRICONE SE VAI...


Sabe aquele filme do qual a gente lembra por causa da música? Pois é bem provável que o compositor da música, tenha sido Ennio Morricone.
Ontem, ele nos deixou, aos 91 anos de idade. Missão cumprida. E que belíssima missão, reservada a poucos, essa de emocionar as pessoas através da música.
Ennio Morricone, nascido em Roma, em 10 de novembro do longínquo 1928, compôs mais de 400 trilhas sonoras para cinema e televisão, e mais de 100 músicas clássicas. É outra importante referência da cultura do século 20 que sai de cena para ganhar uma página definitiva na história.

Mais que os filmes que fazem lembrar, as músicas de Ennio Morricone, tornam-se inesquecíveis devido a emoção que causam. É o caso da música tema do filme Malena, que tem Mônica Belucci no papel principal. Impossível ouvi-la e não lembrar daquele amor da adolescência, normalmente relegado à dimensão do impossível. Enquanto se ouve a belíssima melodia, inevitável pensar que amar alguém à distância, é como ter o tesouro da vida diante de si e não poder tocá-lo, nem possuí-lo.
“Débora”, a partitura que dá vida aos sentimentos da personagem homônima interpretada por Jennifer Connelly no filme Era uma vez na América nos leva como que diante da personagem, que é obrigada, por força das circunstâncias, a renunciar ao seu grande amor.
Como resistir à vontade de também estar naquela sala de projeção, do cinema velho e decadente, quando se ouve Theme D’Amour, a música que embala as lembranças do menino Toto, no filme Cinema Paradiso.
Morricone teve a rara habilidade de unir duas preciosas artes, a música e o cinema. O maestro que ontem nos deixou, deu alma às imagens, mais que aos personagens.
Manteve com o cineasta Sergio Leone uma parceria perfeita, que atravessou décadas. Muitos se lembram das trilhas dos filmes western, Por um Punhado de Dólares, Por uns Dólares a mais, Três Homens em Conflito, protagonizados por Clint Eastwood. Mas a trilha sonora do filme “Era uma Vez no Oeste”, no qual Charles Bronson interpreta o forasteiro misterioso e sua inseparável gaita, que busca vingança contra o matador profissional Henry Fonda é a melhor representação da afinidade entre esses dois italianos, que foram geniais em suas respectivas artes. Quem assistiu à película, jamais esquecerá a música da cena final, em que a bela Claudia Cardinale, caminha pela rua principal da cidade que então passava a conhecer o progresso trazido pela ferrovia.
Há duas outras trilhas compostas por Morricone que também merecem destaque, a do filme “Quando Explode a Vingança”, que tem Rod Steiger, no papel do revolucionário endoidecido disposto a tudo, também dirigido por Sergio Leone e “Meu Nome é Ninguém”, de Tonino Valeri, com Terence Hill como o personagem principal, e novamente Henry Fonda, no papel do vilão.
De todas as músicas compostas por Ennio Morricone, todavia, há uma que talvez sintetize toda a beleza de sua arte, é “Gabriel Oboé” que fez para o filme norueguês “A Missão”, de 1986, dirigido por Roland Joffé, que conta a história de padres jesuítas imbuídos da inglória tarefa de catequisar índios guaranis na América do Sul.
O homem que na juventude tocava trompete em bandas de jazz, também influenciou em algum aspecto bandas como Dire Straits, Metallica e Radiohead.
Premiadíssimo ao longo de toda a exuberante carreira, Ennio Morricone também venceu dois Oscars; em 2007, pelo conjunto da obra, e em 2016, quando compôs para o filme “Os Oito Odiados” de Quentin Tarantino.
O maestro se vai, e não seria exagero imaginar que será recebido com pompas pela corte celestial, ao som de suas maravilhosas e inesquecíveis melodias.

terça-feira, 9 de junho de 2020

NOITE MAL DORMIDA


Havia decidido lutar até o fim. Não sabia exatamente o que isso significava. Mas estava decidido a fazê-lo.
A irmã não via com bons olhos a sua decisão. Sempre sonhara com algo melhor para ele, o irmão mais novo.
 Mas a preocupação demasiada da irmã, que se comportava como se fosse a sua mãe, lhe fazia mal, afetava o seu orgulho, porque se julgava homem formado e independente, mesmo que a realidade o desmentisse a cada manhã.
O calor estava insuportável. Suara feito bica a noite toda. Nem o leite gelado refrescava minimamente o calor que sentia. Tomara banho ainda bem cedo, banho gelado, mas de nada adiantara. Evitara secar o corpo com a toalha, deixando secá-lo naturalmente antes de vestir-se seguindo as orientações da irmã, ao menos essa.

Estavam ambos sentados à mesa naquela manhã quente de verão. Ela fazendo contas ou tentando descobrir um modo de como poderia pagá-las naquele mês. Ele, elaborando planos de como agir em face os problemas que se apresentavam, pensativo, o olhar fixo no copo de leite, ainda gelado que tinha diante de si.
Coma alguma coisa, a irmã lhe disse, notando o seu jeito introspectivo.
Pensou insistir que ele comesse alguma coisa, mas desistiu, porque não valia a pena. Não teria resposta, nem receberia um olhar da parte dele. O silêncio habitual, com que ele começava e terminava os dias, toda vez que enfrentava um problema, a incomodava. Mas sabia que não tinha meios para demovê-lo daquela condição, porque manter-se assim, era a vontade dele. E mais que vontade era a sua natureza.
Vou sair, ele disse. Não sei quando volto. Não se preocupe comigo. Você tem o meu número. Se precisar me ligue. Estarei perto. E se não estiver mandarei alguém pra cuidar de você.
Ela ouvira a tudo, em silêncio, e sem esboçar comentário, enquanto retirava a mesa do café da manhã. Ao pé da porta da cozinha, o cãozinho a observava resignado.
Um carro parou em frente à casa. Dentro, uns sujeitos de aparência nada amistosa. Ele entrou no carro, como se sua presença já fosse esperada. E partiram.
Rodaram alguns quilômetros pela rodovia que levava à cidade vizinha mais próxima. Uma pequena cidade. Dez, quinze mil habitantes, não mais. Uma cidade parada no tempo, que vivia basicamente da cerâmica instalada havia vários anos. O comércio era pouco, quase nada. Bares havia alguns. Postos de combustíveis, dois, instalados em lugares estratégicos; um na entrada e outro, na saída da cidade.
Pararam em frente a um barracão abandonado, desde que a tecelagem que funcionara ali encerrara as atividades havia alguns meses. Um guarda vigiava o local, que pertencia a uma família que morava em outra cidade, bem distante daquela.
Ele desceu do carro, que logo desapareceu virando a esquina. Finalmente a fome havia chegado, e ele resolveu que melhor seria calçar o estômago como diziam as pessoas antigas. Andou pela cidade, à procura de um lugar onde pudesse comer. Sua presença chamara a atenção dos aposentados que jogavam baralho na praça, no centro da cidade, e de algumas senhoras que varriam interessadas a frente de suas casas.
Não demorou e uma viatura da guarda municipal passou por ele, bem lentamente. Percebeu que fora observado, mas os guardas, de certo resolveram que ele não merecia uma abordagem mais minuciosa. Apenas um educado “Bom dia”.
Se precisar de algo... Mas ele não precisava de nada que não fosse um lugarzinho onde pudesse matar a fome, antes que a tremedeira de sua mão se tornasse indisfarçável, o que seria uma afronta para o seu orgulho e perturbaria a sua paz de espírito.
Ao dobrar uma esquina encontrou um bar aberto. Achou que lá talvez pudesse resolver o menor dos seus problemas: a fome.
Pediu um salgado e um refrigerante, e ocupou uma mesa de canto nos fundos do estabelecimento, onde a claridade daquela manhã de sol escaldante não alcançava. Tirou a jaqueta e a colocou sobre a mesa, ao lado do celular, e voltou sua atenção para os pôsteres de times de futebol e de mulheres bonitas e seminuas que ornamentavam as paredes do lugar.
Foi então que ponderou seriamente pela primeira vez sobre a decisão que havia tomado.
Talvez, se bebesse... Ou fumasse um cigarro, lá fora, na rua, e pudesse se sentir melhor. Mas evitou fazê-lo. Limpou a boca com o guardanapo de papel, levantou-se, agradeceu, pagou a conta e foi embora.
De novo na rua não sabia mais para onde ir nem o que fazer. Tinha a opção de ligar para a irmã, mas preferiu descarta-la, porque isso seria demonstrar fraqueza. E abominava essa possibilidade.
Caminhou algum tempo pela cidade, sem destino, acompanhado à distância pela viatura da guarda municipal. O sol foi se pondo e o dia desaparecendo, até que, já fora da cidade, caminhando pelo acostamento da rodovia, viu quando os últimos raios de sol daquela tarde, agonizaram e morreram no horizonte.
Sentiu-se de repente, como aqueles últimos raios de sol; morrendo. Tomou o último gole de água que havia dentro de uma garrafinha guardada na mochila. A boca não demorou a secar. E não havia mais água. E não haveria até o despertar de um novo dia. Caminhou até que lhe faltaram forças nas pernas e o sono acabou por derrotá-lo.
Na manhã seguinte, estava com as roupas do corpo todas molhadas pelo orvalho da noite. Havia dormido no acostamento, encostado num barranco.
A fome voltara para castigá-lo ainda mais, porque se juntava ao corpo todo dolorido. Os pés também estavam molhados, e gelados, assim como as faces, as orelhas e o nariz. Um gosto amargo na boca.
Voltara a caminhar porque outra coisa não lhe restava fazer. Lembrou que o Echo and the Bunymen havia feito um show no Canecão em 1983, e que a Fátima Bernardes aparecera com cabelo curto pela primeira vez na bancada do Jornal da Globo em Outubro de 1990. Essas coisas faziam parte do seu caderno de notas. Qual deles exatamente não sabia, porque afinal, tinha tantos que não saberia precisar a quantidade exata.
A medida da combinação, sim, ele sabia. E lembrava-se constrangido da primeira vez que dela se utilizara, ao chegar da escola, tarde da noite. Os pais já haviam se retirado para o quarto, e a casa, a partir daquele instante lhe pertencia. Fora até os fundos da casa, o mesmo lugar, onde estivera com a irmã pela última vez. Apanhou no bolso da jaqueta, a folha de caderno onde havia embrulhado uma porção do pó branco que havia ganhado de um sujeito na saída da escola.
Com isso você pode tudo, foi o que dissera o sujeito.
Escrever poesia, também?
Poesia, música e o que der na cabeça.
Quanto pago por isso?
Nada, por ora.
Sério?
Sério.
Então sorriu, desacreditando, mas segurando o produto firmemente com a mão.
Experimente. Veja se é bom.
Se não for, eu não pago. E se for, eu volto.
Pode crer.
A primeira sensação foi ver o mundo girar em sua volta, como se estivesse no epicentro de um terremoto. O som ambiente foi ficando longe de sua percepção. E faltara-lhe de repente o sentido de profundidade em relação ao espaço onde se encontrava. Os objetos em torno de si pareciam sair do chão e se movimentar. E o chão, sob os seus pés, parecia não existir. Viu-se como se afastado de seu corpo. A atmosfera tornou-se sufocante, o ar irrespirável. As mãos haviam perdido o tato, e tinha a sensação de que podia penetrar as coisas e os objetos ao contato das mãos. Perdeu então os sentidos. E quando retornou a si, estava sentado com as costas na parede fria dos fundos da casa, sob os olhos atentos da irmã mais velha, que já naquele tempo havia assumido a heroica missão de cuidar dele.
O que deu em você?
Demorou até que ele esboçasse uma resposta.
Não sei. Nada... Eu não sei. Estou confuso.
Depois de observá-lo por algum tempo, desconfiada, a irmã o ajudou a se levantar e a caminhar até o quarto. Tirou-lhe a roupa, e fez com que se deitasse debaixo da coberta. A noite já se despedia e a tímida claridade da manhã anunciava a chegada de um novo dia, quando ele finalmente conseguiu fechar os olhos e adormecer.
Passados muitos anos...
Os pais haviam morrido, a irmã havia casado, perdido um filho e se separado. E ele...
Nunca lhe incomodara que a vida jamais houvera sido como ele desejara no tempo em que iam aos bares, ele e a irmã, aos sábados, para beber e jogar sinuca. A irmã, já em crise conjugal, entrava numa conversa promissora com qualquer boa pinta que por lá aparecesse. E, ao final da noite, à hora de voltar pra casa, antes que o marido retornasse do plantão médico, cabia a ele, o irmão, arrancá-la dos braços do idiota sem noção que pretendia parar com ela num beco escuro qualquer.
Lembravam-se disso, às risadas, enquanto esperavam por atendimento na sala de curativos da unidade de saúde, onde ele, uma vez por semana, ia remendar os trapos no qual haviam se tornado os seus pés.
Tinha agora, 40 anos e a irmã 48. E era ela que o conduzia na cadeira de rodas, que ele conseguira em doação, da parte de uma ouvinte do programa sertanejo de todas as manhãs, apresentado por um velho amigo seu.
O que não faz a diabetes na vida de um homem, perguntava-se toda vez que ficava sozinho no escuro do seu quarto.
Quase cego. Quase sem o movimento das mãos. Sem forças nas pernas para manter-se de pé. E continuava a tomar os remédios, a fazer os exames periódicos, a se privar das delícias da culinária que tanto apreciava.
A última novidade, revelada pelos exames periódicos que fazia na clínica de sua confiança, era que agora sofria também de hipertensão. O que em outras palavras, significava mais remédio acrescidos à sua extensa listinha.
Não fosse a irmã assisti-lo em suas necessidades básicas, talvez já tivesse morrido.
Havia momentos de extrema solidão no escuro do quarto, que a derradeira hipótese tragava a sua esperança.
Mas qual era a sua esperança? Doente, sem cura, aos 40 anos, caminhando para um final indigno e tão diferente do que imaginara para si.
Não havia esperança. E se havia, não era maior que a cinza de uma bituca de cigarro se apagando aos poucos no cinzeiro.
Olhando pela janela da sala de curativos, percebeu que a chuva, lá fora, havia cessado. As nuvens, se dissipado, e uma réstia de luz, permitiu um pouco de claridade naquela manhã.
Pediu que a irmã o levasse até lá fora para ver o sol. Pediu com insistência diante da recusa inicial dela.
Você vai perder a sua vez, ela disse.
E ele, olhando para as pessoas que o observavam, respondeu:
Não me importo, querida. Eu já perdi tantas coisas, que mais essa não fará diferença alguma.
Passaram pela sala de recepção, e os olhos das atendentes se voltaram todos para ele.
Finalmente na calçada, lá fora, pediu que a irmã lhe acendesse um cigarro, o que ela fez com alguma relutância. Depois, pediu que ela o colocasse na direção do sol. Acomodou-se na cadeira de rodas, segurando o cigarro e fez menção de dar uma tragada, mas não chegou a fazê-lo. Manteve os olhos abertos, o mais que pode, em direção ao sol, ainda fraco, que começava a despontar entre as nuvens, naquela manhã de outono. E ficou assim um tempo, até que a irmã chamasse por ele. Não pode ouvi-la.

sábado, 23 de maio de 2020

NASCIDO NISSO


Vivo tendo pesadelos terríveis com Bukowski. Para os menos avisados, não se trata de nenhum remédio de faixa preta ou bebida destilada. Trata-se do meu fidalgo amigo Charles. O meu amigo Charles, pra que fique bem claro, é mais chic, mais descolado, mais desbocado, mais putanheiro e, também, mais sentimental, que aquele outro, pois sim.
Então, chefia, como ia dizendo, sonhei que estava caminhando com meu amigo Bukowski, também conhecido na intimidade como Henki. E nós caminhávamos, assim, despreocupadamente.
Esse foi o sonho mais recente. Caminhávamos por uma rua deserta, isolada, esquecida por qualquer traço de civilidade. Casas abandonadas, ruas esburacadas e calçadas depauperadas, cheias de mato, fezes de cães, urina de gatos, um horror.
Árvores, havia algumas, mal formadas, mal desenvolvidas, como se o sopro da vida tivesse esquecido de bafejá-las. Uma vila de operários, de um bairro distante do centro, entregue ao abandono, desde que a fábrica de calçados encerrara as atividades e pusera todos os empregados no olho da rua.

Era noite, e nós, caminhávamos por essa rua, cada qual com sua garrafa. A minha acabou primeiro. E passamos a dividir a dele, do meu amigo Charles, naquela proporção generosa de, duas goladas pra ele, às vezes, três, e, uma pra mim.
Tudo bem. Lá na frente, quando chegasse a avenida movimentada que dava acesso ao posto de combustível, eu iria à forra. Se chegássemos até lá. Se não ficássemos encostados em alguma parede, dessas que ameaçam desabar a qualquer momento.
Bukowski é um cara legal, fazedor de versos, como eu gostaria de ser. Arrisco uns versos, às vezes, não ficam nada bom, mas eu insisto. Teimosia, o defeito do ser humano. Ele trabalhou nos Correios, eu não. As mulheres parecem não se importar com seu barrigão. Porque ele vive me contando sobre suas conquistas amorosas.
E você? Ele pergunta, nessas ocasiões. Nada, não! – respondo.
Nada tenho a dizer. É sempre assim. Vidinha mais chata a que eu levo! Talvez por isso eu sonho bastante. O que não vivo aqui, no mundo da realidade, busco viver no mundo da ilusão, onde nada é real, embora, tudo possa acontecer.
Já amanhecia, bem me lembro, quando ele me disse, garoto, paramos por aqui. Acenou com a mão, despedindo-se, sem olhar na minha direção, e, com sua garrafa, se foi.
Acordei já era bem tarde. A velha cama, apoiada por tijolos, o velho colchão imundo, fedido, rasgado. Uma vontade louca de passar um café e fumar. E o poema de Bukowski, que eu mais gosto, martelando na minha cabeça, como acontece todo santo dia, fazendo-me lembrar, sem saber muito bem ao certo que dia da semana era, e que eu fui nascido dentro disto, Born into this, um mundo onde agora as pessoas andam de máscaras, e ficam isoladas e distantes, proibidas de expressar o seu afeto, até quando não sei, e acho que ninguém sabe.
Vou ao banheiro lavar o rosto, deparo-me com a feiura de uma cara amassada e olhos apalermados, inchados. Dormir é bom. E me ocorre a mesma maldita pergunta de toda santa manhã: Que chance na vida tem um cara como eu? 51 anos, um fracasso. Um redundante fracasso. Nada que conste no currículo que mereça menção. Em ambos os currículos, o sentimental e o profissional. Desgraça pouca é bobagem.
Então, abro a porta, do quarto onde moro e que também me serve, agora mais do que nunca, de local de trabalho e de estudo. E atravesso o longo corredor que me separa do portão de folha, pintado de marrom que me leva à rua, a cada manhã.
O momento sublime da existência, quando me deparo com o sol, logo pela manhã, que já desponta no leste. Faço minhas orações, olhando na direção do sol, como sempre faço, os olhos fechados, atento à respiração.
E ultimamente, as minhas orações, elas começam assim: Born into this; Born like this; Into this. Traduzindo: Nascido em meio a isso; nascido assim, em meio a isso...
Vou mais longe. Volto a aprisionar o meu pensamento, trago ele para a realidade dura, nua e crua. Onde as pessoas já não tem emprego, talvez daqui a pouco, não tenham trabalho. Onde as pessoas moram de favor, comem de favor, e logo estarão defecando no mato que cresce nas calçadas ou atrás dos postes, cujas luzes, estão queimadas, há muito tempo. Onde, se agradece com olhares compassivos, a esmola dada por aqueles que se dizem representantes de algo mais sagrado do que eles próprios. Onde a fé se tornou artigo de luxo, porque a dor do corpo não é menor nem maior que a dor da alma. Nascido em meio a isso; nascido assim, em meio a isso. E pior, agora que volto meus olhos para a nuvem que passa sobre minha cabeça, eu me lembro, sem disfarçar o sorriso cínico, que me é tão peculiar, que eu sabia, lá atrás, quando me decidi por isso, que seria assim.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

O QUE VIRÁ DEPOIS?


Chão molhado, paredes úmidas
Gotas de chuva escorrem pelo telhado
As folhas orvalhadas do jardim da casa eterna
A tarde se despede, mês de maio, o primeiro dia
Uma vela derretida, consome o resto de esperança
Os últimos acordes, ouve-se ao longe
Uma conversa ríspida no corredor
O que virá depois...?
Onde está o lápis, o café no copo, o papel amassado?
E aquele olhar voltado para o meu
Onde tantas e tantas vezes, encontrei refúgio
Onde tantas e tantas vezes, eu, apenas um garoto
Deixei consumir a realidade
Como flor amassada entre os dedos
Sem saber muito bem ao certo, porque o fazia
O que virá depois?
Uma estrela brilha no céu,
E passa, e rasga a escuridão
Uma réstia de luz na janela da sala, pela manhã
Essas coisas, sem nenhuma importância, ficaram na lembrança
Voando, voando para dentro de si mesmo
Penetrando o mais profundo de si mesmo
Perdendo-se no mar escuro de incertezas
O que virá depois?
O chão está molhado, as paredes úmidas
As folhas orvalhadas caídas na calçada
Ouço vozes, a tarde se despede *
Ninguém caminha pela rua, deserta
De olhares e vozes, e repleta de medo
As cortinas das casas estão fechadas
O quarto escuro, fechado em si mesmo
O que virá depois?
O lenço branco, estendido na janela
Prenúncio, de paz, não sei

sábado, 16 de maio de 2020

O TRIBUNAL DA CONSCIÊNCIA


Aos ferros, o acusado foi apresentado perante o Tribunal da Consciência.
“Que se aproxime o relator” – disse o Juiz.
Com uma pasta volumosa nas mãos, o relator assim procedeu.
“Seja feita a leitura dos autos”.

“O acusado – disse o relator com voz solene – viveu 49 anos, em ótimas condições. Filho de bons pais, frequentou as melhores escolas, vestiu as melhores roupas e teve à mesa, farta refeição, todos os dias. Nada lhe foi exigido, senão estudar e formar-se. Aos 29 anos, casado, e militando na área da advocacia, foi convidado a ingressar na política. De suplente de vereador, passou à vereador. Aproveitando as facilidades da posição que ocupava deixou-se corromper facilmente. Em poucos anos, tornou-se prefeito e depois deputado, ampliando seu espectro de influência, através do qual, conseguia todas as vantagens possíveis para o seleto grupo que representava. Foi alertado pelos pais, várias vezes, para lembrar-se um pouco daqueles que lhe outorgavam o mandato, repetindo o voto de confiança em seu favor, a cada 4 anos. E, nessas horas, ele ria jocoso, tamanha a ingenuidade dos pais. Por suas mãos passaram recursos de grande monta, desviados para comprar as consciências de seus pares, o silêncio e a conivência de autoridades. Lembrava da gente humilde de sua cidade, a cada campanha eleitoral, para renovar promessas, jamais cumpridas. Ganhava a simpatia de seus conterrâneos, com pequenos favores e muitas festas, com comidas e bebidas servidas gratuitamente e à vontade. Nessas ocasiões, lembrava-se de trazer consigo o artista famoso, admirado por muitos, e que no meio da gente humilde, distribuía ao seu lado, abraços, sorrisos e autógrafos. E quando perguntado sobre a escola, a creche, o posto de saúde, o acusado desconversava, dizendo que as obras tão necessárias à população carente estavam a caminho, e que, naquela semana, daria um ultimato ao governador E, ao afirmá-lo, era aplaudido efusivamente, em princípio, pelos correligionários. Numa tarde de domingo, quando voltava para a capital após visita à sua cidade, sofreu terrível acidente automobilístico, no qual veio a falecer. E agora, é trazido perante o Tribunal da Consciência, para ouvir sua sentença”.
E diante do exposto:
“Culpado” – disse o juiz, sem hesitar.
“Mas como? – protestou o acusado – Onde está minha culpa? Qual crime eu cometi?”
“Todos eles”.
“Mas eu não matei! Fui um marido fiel, um pai amoroso, e se roubei, não foi para mim, foi pela causa que defendíamos, nosso projeto de poder”.
“O que não deixa de ser roubo. E sendo roubo, você se apoderou do que não lhe pertencia. E, ao fazê-lo, relegou à miséria, ao desamparo e ao sofrimento, milhares de pessoas que dependiam daqueles recursos para amenizarem as dores inenarráveis que eram obrigados a suportar. As dores do corpo e as dores da alma. E você sabia as consequências de seus atos, o tempo todo. Mas nunca se importou. Nunca tentou corrigir-se. Nunca se esforçou para evitar cometer sempre os mesmos erros”.
“Mas eu não podia! Não podia falhar. Eu era uma peça importante da engrenagem do sistema. Se eu falhasse, iria tudo por água abaixo. E nós, perderíamos a oportunidade, pela qual, esperamos tanto”.
“Não se trata de falhar. Mas de ter atitude. E você não teve”.
“Insisto! Eu não tinha escolha!”
“Tinha. Você sempre teve. Tinha formação. Era um advogado. E um bom advogado. Seu pai o ajudou a montar o seu escritório. Bastava se dedicar ao seu trabalho, e o suficiente nunca lhe faltaria. Mas a sua ambição...”
“Tudo o que fiz foi de boa-fé”.
“Pode até ser. Mesmo assim, você errou”.
Ao sinal do Juiz para que o relator se aproximasse, este assim procedeu. E com a pasta na mão, voltou a ler a peça acusatória.
“O acusado, antes de iniciar a mais recente jornada na condição humana, implorou...”
“Repita isso”.
“... Implorou”.
E diante dessa afirmação, o acusado baixou os olhos e curvou a cabeça, envergonhado.
“Prossiga”.
“Implorou que lhe fosse concedida a oportunidade de estudar e formar-se advogado, porque pretendia lutar pelos direitos dos menos favorecidos, reparar injustiças, e reivindicar o cumprimento das políticas sociais estabelecidas pelos governos em atendimento aos anseios populares”.
“Ou seja, um homem de boa-fé – observou o juiz – Mas o inferno, como todos sabem, está cheio deles. Pois bem. Deus que é tão bom, lhe deu tudo isso o que você pediu. Aliás, implorou. E lhe deu muito mais. Além de advogado, você teve a chance de ingressar na política para trabalhar em favor do bem comum. Fizeste isso?”
“Não”.
“O que lhe diz então, a sua consciência?”
“Que falhei”.
“Certamente. Mas Deus é tão bom, que a sua condenação, será: recomeçar. Não agora, evidentemente. Porque agora, você irá refletir sobre seus atos. E no momento oportuno, daqui algum tempo, terá a chance de refazê-los”.
Diante do Tribunal da Consciência, o acusado ajoelhou-se em agradecimento.
“Não agradeça. Deus não age como os homens que premia os vencedores e repudia os fracassados. Deus deseja que todos caminhem... adiante... sempre.
Havia um homem que acompanhara o julgamento o tempo todo, calado e distante. Mas que não conseguiu esconder um sorriso de satisfação, ao ouvir a sentença. O que mais lhe importava ali, não era a condenação em si, mas ver o acusado, de joelhos.
“Você! – disse o juiz, voltando os olhos na direção desse homem – Aproxime-se”.
Ainda que receoso, o homem não ousou desobedecer.
“Foste chamado?”
“Não”.
“Que fazes aqui?”
“Estou acompanhando apenas. Nada mais”.
“E qual seu interesse no caso?”
“Confirmar as minhas convicções”.
“Conhece esse homem? – disse, referindo-se ao acusado que já se afastava”.
“Sim. E o conheço muito bem. Acompanhei toda a sua trajetória. Soube o tempo todo de seus erros, e porque os cometia”.
“E o que fizeste disso? Tiraste algum proveito em teu benefício?”
“Nenhum”.
“E que sentimento tinhas, naquele tempo, por esse homem desgraçado?”
“Nenhum”.
“Mentes”.
“Como sabes?”
“A consciência tudo sabe”.
“Eu tinha inveja”.
“Procurou alertá-lo sobre os erros que ele praticava?”
“Não. Eu jamais o faria”.
“Por que?”
“Eu queria mesmo era vê-lo se dar mal”.
“E conseguiste?”
“Não”.
“Mas tentaste?”
“Sim”.
“De que modo?”
“Eu o chantageava”.
“Fizeste muito mal”.
“Eu sei”.
“Sabe? Ou sabia?”
“À época, eu não sabia. Aliás, eu não queria enxergar os fatos sob essa perspectiva”.
“Mas agora consegue?”
“Não que eu consiga ou queira. Mas é inevitável”.
“E presume saber o motivo?”
“Sim”.
“E qual o motivo?”
“É simples. Da consciência, nada se esconde por muito tempo”.
“E o que pretendes fazer agora?”
“Recomeçar de onde parei. Se eu puder”.
“Sempre é possível. Antes, porém, vá refletir sobre os seus atos. E depois, no momento oportuno, quando estiver melhor preparado, terá a chance de se entender com o seu desafeto”.
“E ele aceitará minhas desculpas?”
“Quanto a isso não se preocupe. Pra toda situação, boa ou má, a necessidade se impõe”.
Agradecido, o homem afastou-se, tomando o mesmo caminho que o acusado.
O juiz olhou para o relator, à espera de alguma pergunta, que não demorou a vir.
“Posso pedir que entre o próximo acusado?”
“Daqui a pouco. Por ora, vamos nos refrescar com um copo d’água”.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

SAUDADE!


Hoje, penso nas pessoas que conheci e já se foram. Encerraram o ciclo da vida humana antes de mim. E são tantas (...) E tão queridas!
O que fazem elas agora, neste exato momento? A que se dedicam no outro plano da vida? Qual será agora, a sua fisionomia? Estarão mais jovens? Mais envelhecidas? Estarão felizes? Em paz? Eu espero que sim!
Esses dias de solidão imposta, ao qual somos submetidos, nos convidam a reflexões, como essas.

Pensar nos entes queridos, familiares, amigos, companheiros de jornada, de trabalho, de ideal e de cumplicidade, que partiram antes de nós, torna-se inevitável.
Bate a saudade! E vem forte, avassaladora. E faz estragos profundos, quase irreparáveis, em nossas mentes e em nossos corações.
Penso como se sentem aqueles que recentemente não puderam compartilhar os últimos momentos com as pessoas que mais amavam. Não puderam se despedir. Ter direito à um último beijo, um último olhar, uma última confidência, inútil, mas tão necessária.
Que modo mais cruel e mais desumano de se despedir para sempre daqueles que se ama.
Manhãs como esta, nas quais escrevo estas linhas, manhãs nubladas, quando as palavras parecem escondidas e sufocadas, nos fazem pensar sobre estas coisas. Trazem a saudade daqueles que deixaram este cenário da vida, antes de nós.
Será que eles, agora, nos ouvem? Será que sentem as batidas mais apressadas dos nossos corações? Será que vasculham os nossos pensamentos? E o que diriam eles, sobre esses pensamentos, acaso pudessem dizê-lo?
Talvez, possam. Porque, os que amam, amam de verdade, sempre encontram um modo de expressar esse amor.
Então, quando bate a saudade, daqueles que se foram, antes de nós, é porque eles, agora, estão juntos à nós.
E talvez, sejam aquelas flores que encantam nosso olhar, talvez sejam os pássaros, pequenos e tão confiantes, tão felizes, que sobrevoavam nossas cabeças, cantando; talvez seja a brisa da manhã outonal que acaricia nossos rostos, a voz que fala ao nosso coração, baixinho, de um modo tão carinhoso, tão especial, e que nos dá a certeza de que não estamos sós por mais que a realidade nos diga e nos tente convencer do contrário. Não, não estamos sós. Porque não há distância entre aqueles que se amam.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

É SÓ POESIA


Se eu pudesse trazer à tona todo ódio que existe dentro de mim
Se eu pudesse trazer à superfície toda a revolta contida dentro de mim
Faria desaparecer diante de meus olhos
As paredes, quatro ou cinco, ou três, que me aprisionam nesse viver que repudio
Faria surgir diante de mim, a estrada imensa, sem fim, que me leva a lugar nenhum
O deserto infinito, sob o sol escaldante, eu faria surgir
Faria aquecer o frio intenso da noite
Faria secar a água gelada da manhã que escorre pelos cantos, à sombra, do monte de areia
Onde, vez por outra, encosto minha cabeça, enquanto olho para o céu
E vejo sem grande entusiasmo, enquanto respiro devagar, quase parando
As nuvens passarem correndo, sorrindo, brilhando,
Ganhando novas formas e novas dimensões, a cada instante
As doze horas terríveis em que sob o sol me disfarço
O disfarce gasto, a roupa puída, de sempre, fedida,
Roupa rota, o disfarce; sujo, rasgado, porque outro não tenho
Engano a mim mesmo, as pessoas e o mundo, com palavras doces e gentis, mas,
Dentro de mim, o fogo serpentino queima em minhas entranhas,
Labaredas saem de minha boca maldita, condenada ao silêncio
E corrói os ossos quebrados, a carne apodrecida, do corpo que vai se desfazendo
Gemendo a sua dor, uivando o seu rancor, em forma de poesia
Se eu pudesse trazer à tona todo ódio que existe em mim
Faria parar o tempo, voltar o tempo, as pessoas não
Não tenho para elas uma palavra amiga, um gesto de piedade,
Um último olhar, não tenho
As pessoas que conheci, eu as esqueci
Que se desfaçam no nada da minha indiferença
Que permaneçam no vazio do vale escuro da morte
Onde depus minhas armas e toda a minha esperança
Lembro-me daqueles dias a cada cair da noite
Quando surgem as primeiras estrelas no céu
E os olhos se voltam para Deus em oração, seis horas
Vem a noite e traz consigo, todos os seus medos e suas dores, a solidão
Se eu pudesse trazer à tona todo ódio que existe dentro de mim
Talvez acalmaria, ainda que por um segundo o meu coração
E minha mente talvez pudesse aquietar-se no silêncio úmido da prisão
Onde me encontro, à espera, sem esperança, do anjo libertador, que não vem